segunda-feira, 28 de julho de 2008

Redundância recompensada ("Não sou um BBB")

Jornalista da Band News entrevistava João Ubaldo Ribeiro, vencedor do prêmio Camões de Literatura 2008. E eu me divertia...


BN: - Como você se sente ao vencer um dos prêmios mais importantes da literatura em língua portuguesa?

JUR: - Como você disse, no âmbito da língua portuguesa, é um prêmio consagrador. Isso só pode deixar a pessoa feliz...

BN: - Esse é um dos principais, se não o principal prêmio da literatura em língua portuguesa. Por que você acha que venceu esse prêmio?
(Blogueiro: - detalhe que João Ubaldo foi anunciado vencedor pelo conjunto de sua obra)

JUR: - Pela importância de minha obra para a literatura em língua portuguesa. É isso.

BN: - Em que o prêmio muda sua vida?

JUR: - É muito gratificante, pois o prêmio é consagrador...você se sente recompensado por todo o trabalho, pela dedicação, pela esperança...mas não chega a mudar minha vida.

BN: - nem os 100 mil euros?

JUR: - Veja bem...100 mil euros dava pra montar um apartamento num outro bairro de classe média alta aqui no Rio, mas não dá pra pagar as dependências e a empregada. Eu vivo de escrever - dos livros e dos textos que publico religiosamente em jornais -, pois se eu fosse viver da aposentadoria do INSS, estaria ganhando 1.200 reais. Portanto, esse dinheiro vai ficar guardado para ajudar quando eu não puder mais escrever...tem gente me tratando como um BBB, mas eu ganhei 100 mil euros, não 1 milhão.

BN: - Você está escrevendo algum livro novo?

JUR: - Não, eu não estou conseguindo...

BN: - o que está te faltando pra conseguir?

JUR: - sossego.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Papel e Palavras

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No papel me amplio para além das horas da rotina. Fico do tamanho do sol que nasce admirável sobre todos os mares. Proliferam-se os canteiros ao redor de meu pensamento. Alargam-se as fronteiras miúdas por onde varrem ventos as poeiras. Folhas se espalham secas, verdes, amassadas, inquietas, misturadas. Sou o eco de mim mesmo plantado em palavras.
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quinta-feira, 3 de julho de 2008

Entrelinhas da Infância


É no universo da infância que são forjados os adultos póstumos. Experiências vividas naqueles vastos anos que se espremem na metamorfose da criança em adulto são repletas de informações sobre as raízes da personalidade dos indivíduos. Sendo assim, olhar para trás significa buscar a essência própria, catar os grãos de vida que foram incorporadas ao longo da trajetória de uma pessoa.

Reviver memórias não é algo simples ou fácil. Esse é um percurso nem sempre claro e muitas vezes surpreendente que pode nos dar uma maior consciência a respeito de aspectos da própria índole. Reviver memórias é enfrentar um reencontro com fatos e sensações que explicam o que somos pelo que fomos e vivemos. É nos ver diante da criança que éramos para enfrentar a realidade da pessoa que nos tornamos.

Memórias de infância já foram contadas por grandes autores, como Graciliano Ramos em Infância (1945) e Jean-Paul Sartre em As Palavras (1964). Em novembro de 2006 foi a vez do escritor português José Saramago relatar suas lembranças de criança em As Pequenas Memórias - livro lançado simultaneamente em Portugal e no Brasil.

Não restam dúvidas do interesse que o resgate de memórias causa em escritores diversos. Entretanto o sucesso dessa empreitada autoral depende em grande parte do desempenho do autor na relação estabelecida entre a subjetividade típica da atividade literária e a realidade digna das lembranças a serem relatadas.

De certo que o domínio da prosa é um diferencial na hora de contar fatos, sentimentos e pensamentos que vêm de um passado real. São esses detalhes poéticos os responsáveis por transmitir uma determinada visão para o leitor e, principalmente, por proporcionar-lhe prazer estético. Nessa hora vale o talento literário e a sensibilidade criativa capazes de distanciar das simplórias biografias tais romances bibliográficos.

Para leitores e fãs, essas obras constituem também verdadeiros campos de pesquisa onde é possível encontrar vestígios da formação dos escritores. Traumas, lugares e fatos revelam o processo de desenvolvimento daquela pessoa através do que mais marcou sua memória. Temas recorrentes e aspectos do estilo podem ser, portanto, cavados a partir das experiências que eles nos contam.


Infância

No livro de Graciliano Ramos, as memórias guardadas do seu tempo de criança estão organizadas para contar uma história. O livro faz um recorte da vida do escritor, circunscrevendo um período determinado de seu desenvolvimento como indivíduo, que vai desde a mudança de sua família da zona da mata de Alagoas para o sertão pernambucano até o retorno ao estado de origem.

O respeito à evolução cronológica garante o formato da narrativa que acompanha o crescimento de Graciliano. Em certo ponto do livro o autor deixa claro que lança mão de sua criatividade na falta de lembranças completas a respeito de cada momento abordado “O hábito me leva a criar um ambiente, imaginar fatos a que atribuo realidade”.

A infância contada por Graciliano revela uma criança que cresceu na completa ignorância, sem afeto dos pais ou aparentes vocações. Traumatizado pela rude tentativa familiar de alfabetizá-lo, o menino tomou repúdio pela leitura. Quando já tinha 9 anos, depois de inúmeras imersões em escolas e ajudas paralelas, ele alcança, enfim, a graça de decifrar as palavras e encontra por meio da leitura o caminho para sua liberdade e sua individualidade.

“Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses dois entes difíceis ajustavam-se. Na harmonia conjugal a voz dele perdia a violência, tomava inflexões estranhas, balbuciava carícias decentes. Ela se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que nos batiam no cocuruto, dobrados, e tinham dureza de martelos. Qualquer futilidade, porém, ranger de dobradiça ou choro de criança, lhes restituía o azedume e a inquietação.” (Pais, p. 13)

Poesia dos olhos de criança

O cuidado com a construção do narrador-personagem é a marca do livro. Graciliano faz questão de transparecer na escrita o menino a quem as memórias pertencem. Cada descrição, impressão ou julgamento obedece à capacidade perceptiva de uma criança; parece dignamente captada por olhos miúdos. À medida que a história evolui, cresce a riqueza de detalhes e informações que deixam o relato cada vez mais claro e definido. Assim, a história amadurece junto com o menino que a conta.

O leitor saboreia uma prosa simples, que enfeita a visão imprecisa de uma mente rústica sem prejudicar o entendimento dos fatos. Ao contrário, isso proporciona uma leitura agradável, que experimenta uma descrição de sofisticada expressão poética. Imagens e metáforas enriquecem as impressões da mente infantil e carente de desenvolvimento.

“Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal.[...] Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto. Retalhos e sons dispersavam-se. Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me impuseram respeito.” (Imprecisão, p. 10, 11 e 12)

“Um dia faltou água em casa. Tive sede e recomendaram-me paciência. A carga de ancoretas chegaria logo. Tardou, a fonte era distante – e fiquei horas numa agonia, rondando o pote, com brasas na língua. Essa dor esquisita perturbou-me em excesso. Nos sofrimentos habituais eu percebia gestos desarrazoados, palavras coléricas. A minha vida era um extenso enleio que sobressaltos agitavam. Para bem dizer, eu flutuava, pequeno e leve. De repente, um choque, novos choques, estremecimentos dolorosos. Impossível queixar-me agora. Não me dirigiam ameaças, abrandavam, e as recusas apreciam quase doces. Na verdade não recusavam. Num minuto haveriam muitos canecos de água. Chorei. Embalei-me nas consolações, e os minutos foram pingando, vagarosos. A boca enxuta, os beiços gretados, os olhos turvos, queimaduras interiores. Sono, preguiça – e estirei-me num colchão ardente. As pálpebras se alongavam, coriáceas, o líquido obsessor corria nas vozes que me acalentavam, umedecia-me a pele, esvaía-se de súbito. E em redor os objetos se deformavam, trêmulos. Veio a imobilidade, veio o esquecimento. Não sei quanto durou o suplício.” (Sede, p. 24)

De onde nasce o autor

Características do consagrado Graciliano Ramos podem ser facilmente pescadas em Infância. Ao longo dos capítulos estão espalhados aspectos da personalidade do autor como suas grandeza, modéstia e lucidez. Um exmplo disso é a curioside pela leitura. Mesmo constantemente reprimido, o menino Graciliano não se fechara à ignorância que o atolava. Sua vida pouca jamais o tornara pedra.

A criança da história vive cercada por julgamentos e disciplina, desamor e rudeza. Esse é o sentido das primeiras relações experimentadas por ela, do seu contato inicial com o humano. O universo de contrastes se estabelece claramente nas alternâncias entre o inverno abundante e o verão de escassez, a tranqüilidade da vida interiorana e o temor da violência caseira. O menino Graciliano se mostra num mundo inconstante, de altos e baixos injustificados.

Esse ambiente de desconfiança é um retrato que se reproduziu na vida do escritor em diversas de suas obras (como Angústia, de 1936). Torna-se fácil explicar o pessimismo atribuído ao conjunto da obra literária de Graciliano Ramos quando temos diante dos olhos a criança que o fomentou, o ambiente onde foi criado.

A aspereza prosaica das obras do autor reflete, na verdade, as cores com que sua alma foi preenchida na infância. O menino maltratado, desvalorizado e a quem só eram atribuídos defeitos se reproduz na agonia, na tristeza, na desilusão e no ceticismo que suas obras literárias costumam carregar. Isso pode ser conferido em leituras como Insônia, Vidas secas e São Bernardo, entre outras.

“Mergulhei numa comprida manhã de inverno. O açude apojado, a roça verde, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos, ficaram-me na alma. Depois veio a seca. Árvores pelaram-se, bichos morreram, o sol cresceu, bebeu as águas, e ventos mortos espalharam na terra queimada uma poeira cinzenta. Olhando-me por dentro, percebo com desgosto a segunda paisagem. Devastação, calcinação. Nesta vida lenta sinto-me coagido entre duas situações contraditórias – uma longa noite, um dia imenso e enervante, favorável à modorra. Frio e calor, trevas densas e claridades ofuscantes.[...] Bem e mal ainda não existiam, faltava razão para que nos afligissem com pancadas e gritos. Contudo as pancadas e os gritos figuravam na ordem dos acontecimentos, partiam sempre de seres determinados, como a chuva e o sol vinham do céu. E o céu era terrível, e os donos da casa eram fortes.” (Contrastes, p. 17 e 18)

“Essas moças tinham o vezo de afirmar o contrário do que desejavam. Notei a singularidade quando principiaram a elogiar o meu paletó cor de macaco. Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de qualidade superior, o feito admirável. Envaideci-me: nunca havia reparado em tais vantagens. Mas os gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei. Longe disso: julguei curiosa aquela maneira de falar pelo avesso, diferente das grosserias a que me habituara. Em geral me diziam com franqueza que a roupa não me assentava no corpo, sobrava nos sovacos. Os defeitos eram evidentes, e eu considerava estupidez virem indicá-los. Dissimulavam-se agora num jogo de palavras que encerrava malícia e bondade. Essa mistura de sentimentos incompatíveis assombrava-me e pela primeira vez ri de mim mesmo. A doçura picante não me reformava, é claro, mas exibia-me como eu poderia ter sido se a natureza e o alfaiate me houvessem dado os recursos indispensáveis. Satisfazia-me a idéia de que a minha figura não provocava inevitavelmente irritação ou desdém, e as novas amigas surgiram-me compreensíveis e caridosas.
Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pespontos das minhas ações cor de macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingirem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco.” (Traços do autor, p. 184 e 185)


As Pequenas Memórias

Em As Pequenas Memórias, José Saramago reúne lembranças soltas, relatos de sua vida dos 4 aos 15 anos de idade que vão e voltam no tempo a todo instante. Essa empreitada autoral traz consigo a melindrosa tarefa que consiste em relacionar simples relatos do que Saramago traz na memória com o exercício literário. Certamente essa não foi uma tarefa tão árdua para o autor quanto o reencontro com seu tempo de criança.

Conforme declarou Saramago em entrevista concedida ao jornal espanhol El País, o processo de escrita do livro foi doloroso por retratar momentos de sua vida que classificou como “tempos que não tinham nada de idílicos”. Membro de uma humilde família da pequena aldeia Azinhaga, Saramago conviveu com a escassez de recursos e teve que aturar um pai que não lhe legou boas lembranças.

Como de costume, Saramago é primoroso na construção de uma prosa que por vários momentos se dissolve em poesia. A capacidade descritiva do romancista de escrita peculiar (seja na estrutura gramatical, seja no estilo) desabrocha livremente a cada fato contado com naturalidade. Conforme o próprio autor diz no livro, ali estão “as pequenas memórias. Sim, as memórias pequenas de quando fui pequeno, simplesmente.”.

Pitadas de comédia acompanham a fala de Saramago, que em diversos momentos faz uso da auto-ironia e concede assim uma maior leveza à sua prosa. Observações quase cômicas impõem um bom ritmo ao texto, que vai se refrescando a cada mudança temática. O tom cômico discreto pode ser notado quando o autor se dedica à história do nome Saramago “Suponho que deverá ter sido esse o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai” ou quando fala do seu registro de nascimento, que o declara nascido dois dias após a data verdadeira “Em relação à data de nascimento que tenho no bilhete de identidade morrerei dois dias mais velho, mas espero que a diferença não se note demasiado.”.

A idéia do livro surgiu, como revela Saramago em certa altura da obra, nos tempos em que o autor trabalhava no romance Memorial do Convento. O projeto inicial do que até então seria “O livro das Tentações” era mostrar a subversão que a idéia de santidade provocava na natureza humana, em seu lado mais animal. Depois o autor se recolheu a essa proposta mais simples em que reúne memórias de sua meninice, embora confesse enxergar nela vestígios de sua intenção inicial, como revela no trecho seguinte: “[...] sendo eu um sujeito do mundo, também teria de ser, ao menos por simples ‘inerência do cargo’, sede de todos os desejos e alvo de todas as tentações.”.

“Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago.Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registro Civil da Colega o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacônico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem ao bebê-lo, não precisei de inventar um pseudônimo para, futuro havendo, assinar os meus livros.” (Saramago, p. 43 e 44)

O homem que era menino

José Saramago encara sua infância com muita perspicácia. As falas do narrador-personagem são compostas não só por descrições de lembranças ou resgate de pensamentos, mas incluem análises psicológicas e conclusões tardias. Embora dê espaço e respeite Zezinho, ele não permite que a criança conte as histórias. O autor Saramago se impõe como dono das palavras e retoca com sua maturidade as memórias e suas eventuais interpretações. Algumas das lembranças trazem ao autor conclusões a respeito de sua infância latente e registram sua análise e até um olhar romântico sobre o passado.

“Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos...” (Horas da infância, p. 59)

Da criança nasce o autor

Nas linhas de memórias é possível encontrar o nascimento de motivações do Saramago autor. Dentre diversas coisas que o escritor português conta no livro, há informações sobre a carreira escolar do menino Zezinho, do seu interesse pelo estudo de francês e literatura e até uma precoce leitura de Molière.

Otros vestígios do entendimento entre Saramago e as palavras estão espalhados entre as memórias. O autor não deixa escapar, por exemplo, a sua dedicação à leitura de jornais velhos quando morava com os avós. Na mesma época, por volta dos 10 anos de idade, ele conta do bom desenvolvimento que tinha tanto na leitura quanto na escrita. Saramago também faz referências a episódios que julga tê-lo influenciado posteriormente na hora de escrever obras consagradas, como Memorial do Convento, Ensaio sobre a cegueira, Todos os Nomes, As intermitências da morte e Evangelho segundo Jesus Cristo “É também desse tempo o descobrimento do mais primitivo dos refrescos que já me passaram pela garganta: uma mistura de água, vinagre e açúcar, a mesma que viria a servir-me, com excepção do açúcar, para, no meu evangelho, matar a última sede de Jesus Cristo.”.

A obra ainda contempla alguns registros históricos que fizeram parte da vida do autor. Saramago conta como acompanhou a guerra civil espanhola através da imprensa, até perceber o esquema de censura pelos militares a favor de Franco. O autor relata a reação de Zezinho, que desde então não gosta de militares, até Saramago. O autor revela também como, por intuição, tomou antipatia a Hitler, Mussolini e Salazar no período em que lia jornais velhos.

“Quando a guerra civil da Espanha começou, eu já trocara o Liceu Gil Vicente pela Escola Industrial de Afonso Domingues [...] Lia na imprensa que aos combatentes de um lado se dava o nome de vermelhos e que aos outros os devíamos conhecer por nacionalistas [...] Até o dia, que cedo foi, em que percebi que andava a ser ludibriado pelos militares reformados que se empregavam na tarefa de censurar a imprensa, fazendo suas, respeitosamente, a mão de ferro e a luva de veludo. Vitórias, só as de Franco, decidiam eles.” (Guerra espanhola, p. 131)

“Estas duas imagens – a de um Dollfuss que sorria vendo passar as tropas, quem sabe se já condenado à morte por Hitler, a da mão de ferro de Salazar escondida por baixo da macieza de um veludo hipócrita – nunca me deixaram ao longo da vida. Não me perguntem porquê. Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar, outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, fulgurância, iluminações, e não há explicações para elas, não as convocávamos, mas elas aí estão. E são estas que me informam que já nesse tempo, para mim, mais por intuição, obviamente, que por suficiente conhecimento dos factos, Hitler, Mussolini e Salazar eram colheres do mesmo pau, primos da mesma família, iguais na mão de ferro, só diferentes na espessura do veludo e no modo de apertar.” (Hitler, Mussolini e Salazar, p. 130)

Memórias imprecisas

Outro aspecto que Saramago faz questão de deixar claro para o leitor é a imprecisão das memórias ali postas. O autor confessa não ter controle absoluto das fronteiras entre o que realmente aconteceu, o que é fruto de sua imaginação infantil ou o que é puro artifício literário. Segundo ele, é possível que a imaginação dê cor a falsas lembranças. Entretanto isso não constitui uma preocupação para Saramago. Em diversos momentos ele afirma não ter certeza de que fatos ocorreram da forma como foram contados e deixa dúvidas a respeito da veracidade de algumas informações.

Essa discussão sobre a natureza da memória vai e volta durante o livro. Na verdade, o apuro da veracidade não é uma exigência da obra. Ao contrário, a indefinição de fronteiras acaba interagindo com o formato livre que o escritor adotou para o “enredo” do livro - que não obedece à cronologia e nem possui rígida divisão temática. Além de tudo, essa imprecisão entra na cartilha da criatividade poética que envolve a construção literária do livro.

"Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e úmida vara ou os sonoros remos de antanho, e impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu às fronteiras do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo. [...] Essa perda, porém, há muito tempo que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as suas paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a cancela do quintal onde um dia vi uma pequena cobra enroscada, entrar nas pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro para o púcaro de esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele Verão.” (Memórias perdidas, p. 15 e 16)

“Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas. [...] Em rigor, em rigor, penso que as chamadas falsas memórias não existem, que a diferença entre elas e as que consideramos certas e seguras se limita a uma simples questão de confiança, a confiança que em cada situação tivermos sobre essa incorrigível vaguidade a que chamamos certeza.” (Não há memórias falsas, p. 58 e 110)


Confira outros trechos de As Pequenas Memórias:

Azinhaga (p. 09, 10 e 11)
“À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade, mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes. [...] Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer onde nasci tivesse sido conseqüência de um equívoco do acaso, de uma casual distração do destino, que ainda estivesse em suas mãos emendar. Não foi assim. Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raízes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do imenso oceano do ar [...] Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda haveria de retornar a Azinhaga para acabar de nascer. Durante toda a infância, e também os primeiros anos da adolescência, essa pobre e rústica aldeia [...] foi o berço onde se completou minha gestação, a bolsa onde o pequeno marsupial se recolheu para fazer da sua pessoa, em bem e talvez em mal, o que só por ela própria, calada, secreta, solitária, poderia ter sido feito.”

Paisagem (p. 13)
“a criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imagina-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: ‘que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!’ Naturalmente, quando subia ao campanário da igreja ou trepava ao topo de um freixo de vinte metros de altura, os seus jovens olhos eram capazes de apreciar e registrar os grande espaços abertos diante de si, mas há que dizer que a sua atenção sempre preferiu distinguir e fixar-se em coisas e seres que se encontrassem perto, naquilo que pudesse tocar com as mãos.”

Peixe (p. 78 e 79)
“Voltei ao sítio, já o sol se pusera, lancei o anzol e esperei. Não creio que exista no mundo um silencio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci. Ali estive até quase não distinguir a bóia que só a corrente fazia oscilar um pouco, e, por fim, com a tristeza na alma, enrolei a linha e regressei a casa. Aquele barbo tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de certeza não morreria de velho, alguém o pescou num outro dia qualquer. De uma maneira ou de outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu.”

Avô (p. 119 e 120)
“Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. [...] O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vêm cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa séria que não pôde ser nunca. [...] Mas a imagem que não me larga nessa hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Que palavra dirá então?”

Avó (p. 120)
“Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: ‘o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.’ Assim mesmo. Eu estava lá.”

Cavalos (p. 22, 23 e 24)
“O meu problema com os cavalos é mais pungente, daquelas coisas que ficam a doer para toda a vida na alma de uma pessoa. [...] Voltemos ao tio Francisco Dinis.[...] Ora, em tantos anos – dos oito de idade aos quinze são muitos, muitíssimos – nunca aquele tio se lembrou de subir-me para a desejada sela, e eu, suponho que por um orgulho infantil de que não podia ser consciente, nunca lho pedi.[...] Hoje tenho imagens desses animais por toda a casa. Quem pela primeira vez me visita pergunta-me quase sempre se sou cavaleiro, quando a única verdade é andar eu ainda a sofrer dos efeitos da queda de um cavalo que nunca montei. Por fora não se nota, mas a alma anda-me a coxear há sessenta anos.”
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Ilustração: Leonardo Matos
Fotos: Divulgação
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