sábado, 17 de janeiro de 2009

Uma atriz contra canastrões


Sem referência a Ary Fontoura, que fique bem claro. De resto, Cláudia Arraia (a caipirona deslumbrada), Dalla Vecchia (o jornalista engajado) , Glória Menezes (a múmia) e Mariana Ximenes (o purgantezinho nº 1 do Brasil) deram ao público que assistiu o último capítulo de A Favorita bons momentos de risada. Enquanto encarnavam o estilo drama desesperado (o preferido da classe canastrona), cheio de gritos e suspiros, caras e bocas, mas sem naturalidade alguma, era Patrícia Pilar quem dava o tom da cena, que ficou repleta de ironia e deboche. Deboche esse que, de tão adequado, atravessou roteiros, personagens e terminou por se constituir num deboche do próprio folhetim e da fraca atuação do "elenco do bem". Era como se Patrícia Pilar representasse uma espécie de ombudsman teledramatúrgico dando suas ácidas, porém adequadas críticas às falhas da história e dos (demais) intérpretes de A Favorita.

Um momento ilustrativo é quando Irene (a anta históoorica) saca uma arma e grita "Basta, Flora!" com voz, feições e firmeza dignas do mais antigo dos caquéticos. Nesta cena está a reação mais ombudsman da personagem de Pilar, que guarda em sua fala um deboche da atitude tomada pela personagem de Menezes, que mesmo com todo desespero não consegue fazer ninguém (digo, espectador nenhum) sentir compaixão por ela, mas, ao contrário, desperta boas gargalhadas. "O que que você vai fazer, sua múmiaaaa?? Vai atirar em mim?? Você não sabe nem mexer nessa arma. Você não sabe nem destravar esse treco aí...ahh, dona Ireeneeee! Só a senhora pra me fazer rir numa hora dessa...". E rimos todos.

Essa mesma crítica vale para toda a sequência de abertura do capítulo final de A Favorita (e que, por sua vez, pode ser transposta para a novela como um todo). A comédia venceu o drama não somente porque Patrícia Pilar é divina e teve falas muito boas, mas também porque ela dividiu uma história com canastrões (se fossem músicos, diriamos cafonas ou bregas), atores desprovidos de sensibilidade e naturalidade suficientes para transmitir ao telespectador o drama de seus personagens.

De tão exagerado, o "tiro dramático" dos colegas de Patrícia saiu pela culatra e acertou o mesmo alvo debochado de Flora, já que ilustravam com perfeição cada apelido ou ironia que saía da boca da vilã. Mas a culpa não é apenas deles, afinal, a novela começou a errar desde a escolha dos intérpretes. Como poderia Flora-Pilar, de beleza feminina, doce voz natural e personalidade carismática carregar tanta inveja de alguém sem brilho, de voz empostada e corpo masculinizado quanto Donatela-Raia? O non sense era tácito.

Abaixo, as duas primeiras partes do último capítulo (e únicas dignas de serem assistidas, diga-se de passagem), com algumas falas destacadas. Se por acaso você rir lendo, imagine o que eu não sofri pra decupá-las?

Parte 1 (Flora X Caipirona e Engajado)

"Advinha quem tá ligando pra empatar a lua de mel de vocês? Ela mesma...a purgantezinho número 1 do-Bra-sil" - para Donatela e Zé Bob, sobre a chamada de Lara no celular.

"Mas é muito mal educada essa garota...ah...você educou muito mal a minha filha, Donatela..." - em sequência à fala anerior.

"Imagina como vai ser triste o amor de vocês acabar em picuinha, discussãozinha...em cobrancinha..." - para Zé Bob, ao discursar sobre o ridículo futuro da relação dele com Donatela.

"Com a minha ajuda, vocês vão terminar que nem Romeu e Julieta, no auge do amor, olha que romântico?! Que poético?! Nunca vão ter que pagar uma conta....levar filho pro colégio...fazer supermercado...eu vou poupar vocês dessa vidinha classe méeeedia...desse cotidiano mixo...se bem que eu pagava pra ver vocês daqui a 1 ano, a caipirona deslumbrada e o jornalista engajado..."

"Que que é? Tá com peninha de mim? Você devia é ter pena de você, do que você vai sofrer daqui a pouco...Tiro dói, hein??!" - para Zé Bob

Parte 2 (e a chegada da cavalaria: Múmia, Purgantezinho e Sil)

"Então chegou a cavalaria pra te salvar? Tudo bem...melhor ainda...eu gosssto de público..."

"N-ah...Donatela...você sempre querendo me fazer de idota, querendo me enganar...tudo bem. Eu vou te dar mais um minuto de lambuja. Você faz a sua última oração, diz adeus pra sua filhinha que tá chegando...Aaaaai, o que seria de você se não fosse o meu coração de manteiga..."

"Donatela: A gente tem que falar tudo que a gente ainda não disse uma pra outra...
Flora: Tudo já foi dito, Donatela. Ao menos eu já falei tudo que eu queria.
Donatela: Mas eu não. Eu tenho coisas pra te dizer...
Flora: Não tem problema. Depois você psicografa."

"Prooonto...chegou a cavalaria! Agora sim a festa ficou animada...(risos)....agora gosteeei! Tava tudo muito sem graça, tudo muito fá-cil. Agora a emoção está garantida."

"O que que você vai fazer, sua múmiaaaa?? Vai atirar em mim? Você não sabe nem mexer nessa arma, você não sabe nem destravar esse treco aí...ah, dona Ireeneeee! Só a senhora pra me fazer rir numa hora dessa" - para Irene, quando ela saca uma arma e grita (quer dizer, tenta parecer firme): "Basta Flora!"

"Lara: Atira ou eu atiro em você!
Flora: Mas olha só pra isso...a vaquinha resolveu agir!
Lara: eu não sou seu purgantezinho, hein mãe?" (piedade de Ximenes, tadinha...tentando devolver a ironia de Flora, mas sem um pingo da vocação e da competência pra tal...bom para nós, que rimos de sua (L)imitação)








Antes de encerrar, tem mais um diálogo que precisava ficar registrado:

Silveirinha: - Flora, acaba com isso, cai na real! pelo amor de Deus, Flora!
Flora: - Deus...quem é você pra falar em Deus? Cai na real você, seu idiota! Seu lugar é no inferno, junto comigo.

E assim Flora e Sil devem ter ido para o inferno, junto com Jackson Antunes, Lília Cabral, Murilo Benício e outros atores de verdade.



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quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Glória Ramos e Tony Pires

De produção pouco pretensiosa, Se Eu Fosse Você surpreendeu em 2006 com um grande sucesso de público. Os responsáveis por tal feito, todos sabem, são os protagonistas Tony Ramos e Glória Pires, que arrebataram praticamente todos os prêmios de melhor ator e atriz do ano com suas irretocáveis atuações no longa em que seus personagens trocam de corpo, obrigando um a interpretar o outro, com todos os trejeitos, falas e expressões que deixam clara a complexidade da tarefa de atores de verdade – e marcam a diferença entre Tony e Glória e alguns colegas de emissora. Afinal, alguém imagina Cláudia Raia e Cauã Reymond encarnando Cláudio no corpo de Helena e Helena no corpo de Cláudio? E eles fazem sucesso no horário nobre.

Enfim, por causa dos prêmios que recebeu, mesmo sem se caracterizar como uma megaprodução, o filme acabou tendo um marketing forte e prolongado. E daquele tipo de marketing que mais funciona: o do reconhecimento pela qualidade. Com tantos prêmios ao longo do ano, o filme permaneceu na mídia por bem mais tempo que ficou em cartaz, colecionando prêmios e acumulando ganhos de imagem comercial.

Se eu fosse você de novo - Depois de tantos fatores positivos, a continuação do projeto era indiscutível. E que bom que isso aconteceu, porque Se Eu Fosse Você 2 é daquelas produções objetivas e que sabem explorar o que deu certo antes. O filme, em cartaz desde o dia 2 de janeiro, não perdeu tempo inventando uma grande história nova (afinal, não foi o que conquistou público, crítica e o consequente sucesso da primeira versão).  Inteligentemente, a continuação focou na criação de situações cômicas e bons diálogos, se concentrando em explorar os excelentes intérpretes que o protagonizam.

Daniel Filho apenas requentou a história anterior e depositou suas fichas dando bastante espaço e ótimas falas (sobretudo a Glória) para que os protagonistas fizessem o que bem sabem fazer. Praticamente não há cenas sem alguém da dupla, que no cartaz do cinema aparece com sobrenomes trocados – Glória Ramos e Tony Pires.  Uma brincadeira com a história do filme e o registro de um encontro entre dois atores competentes e com uma química cênica descoberta, comprovada e cultuada há muitas novelas atrás.





Se Eu Fosse Você 2 já teve 575 mil espectadores no primeiro final de semana, batendo os 470 mil de Carandiru e estabelecendo o novo recorde de público para estréia no cinema nacional.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Tragédias desiguais


Catástrofes são sempre catástrofes. Geram perdas, sofrimento, calamidade. A mim soa completamente inapropriado comparar dores ou estabelecer uma competição entre tragédias. Mas enquanto cento e tantos morreram repentinamente pelo peso da chuva excessiva em Santa Catarina, muitos vêm morrendo aos pouquinhos, definhando pela falta do mesmo líquido, que vos falta em quantidade mínima na Bahia, em Sergipe, no Piauí, em Pernambuco, no Ceará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, no Maranhão e em Alagoas. É a seca nordestina, que entra ano, sai ano tortura milhares de pretos, cafuzos e caboclos. Eles vêem a morte se aproximar devagar, arrastar-se pela terra rachada e consumir cada um deles e de seus filhos com a paciência de uma cobra que espera a fome voltar para devorar a presa seguinte. Essa é uma tragédia anual, com data marcada e sem precisão de meteorologista. Só queria saber quantos já morreram em virtude da seca no nordeste esse ano. Com certeza bem mais que as cento e tantas vítimas de Santa Catarina. Nem por isso morador de rua se voluntariza pra vir aqui trazer comida e uma garrafa d'água; nenhuma rede de televisão faz campanha desesperada sem a auditoria do Ministério Público. Mesmo com as estradas tão fáceis de transitar, os carros-pipas só aparecem esporadicamente. Essa não é uma crítica aos pobres coitados vitimados em Santa Catarina: é uma crítica aos (in)valores que permanecem na cultura produtiva da grande mídia nacional e ao preconceito de classe que permanece na sociadade brasileira. "Se morre o preto favelado suspeito de roubo, é mais uma notinha na página policial, quando alguma coisa; se quem morre é um menino-amarelo de classe média, vira capaS de revistas por semanas de comoção nacional". Como disse, não acho justo nem apropriado comparar tragédias. Mas dá pra comparar a desigual forma com que elas chegam até nós, nos atingem e nos sensibilizam. E isso, em parte, é culpa da mídia. Em parte, não é.
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Foto: Aleksander Kurzatkowski

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Sangue das canções

Conversando com algumas pessoas sobre música e, mais precisamente, sobre coisas fantásticas e fantasticamente diferentes produzidas na MPB (utilizo a sigla para referir-me à Música Popular Brasileira de quando a música esteticamente criativa no Brasil era a mais popular - assim me contam os mais velhos) me dei conta de quantas canções interessantes, maravilhosas, heterogêneas temos guardadas na memória de coletâneas e álbuns mofados. Eu, que me julgava um ignorante na área, e ainda certo de minha ignorância, percebi que muitos dos que gostam a fundo de música e são jovens como eu também não conhecem muita coisa. Por isso, resolvi postar aqui canções, sempre que alguma lembrança (ou nova descoberta) me ocorrer. Assim consigo doar um pouco de meu pequeno acervo de MPB velha e de MPB nova com espírito da velha. Adoraria que fizessem o mesmo comigo. No caso, a canção é Drama, composição peculiarmente "dramática" do mano Caetano sobre a intensa tarefa que é compor e interpretar canções. Ele sabia como fazer isso feito poucos na época da MPB velha. (Pra quem quiser baixar, a intérprete é a mana Bethânia)


Drama

Eu minto, mas minha voz não mente
Minha voz soa exatamente
De onde, no corpo da alma de uma pessoa,
Se produz a palavra "eu"

Dessa garganta, tudo se canta
Quem me ama, quem me ama?

Adeus
Meu olho é todo teu
Meu gesto é no momento exato
Em que te mato

Minha pessoa existe
Estou sempre alegre ou triste
Somente as emoções

Drama
E ao fim de cada ato
Limpo num pano de prato
As mãos sujas do sangue das canções


domingo, 3 de agosto de 2008

"Não é pelo dinheiro. É pela mensagem"

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Anarquia insana e personalidade debochada fazem do Coringa de Heath Ledger um vilão carismático e hilário.
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Fazendo eco ao que se dizia no mundo inteiro, a edição de julho da revista Super Interessante publicou que o filme Batman - O Cavaleiro das Trevas deveria se chamar Coringa, o Filme. Foi com essa expectativa que encarei a sala de cinema lotada para assistir a última performance do talentoso Heath Ledger, que morreu precocemente em janeiro deste ano, vítima de uma mal sucedida combinação de analgésicos, tranqüilizantes e cia. Assim tem sido dito.

O fato é que não demora muito depois que acabam os trailers para o arquiinimigo do Batman (Christian Bale) tomar as rédeas da trama e fazer jus ao que tem se falado ao longo dos meses que sucederam a morte do ator e antecederam a estréia do filme. Com ironia e muito bom-humor, Coringa consegue transformar o que era para ser mais uma história de super-herói nem boa nem ruim, mas repetitiva em uma comédia sarcástica e de muito bom-gosto. Até o clássico mordomo Alfred, vestido por Michael Caine, passa despercebido.

Crime e anarquia – Na sombra da proposta central do filme de narrar uma crise existencial de Batman com relação à sua condição de herói, Coringa desperta gargalhadas e admiração. O ideal de criminalidade anárquica do vilão é que arrebata o espectador e domina a trama ao querer (e conseguir) instalar o caos, destruir planos e mostrar como as instituições sociais são frágeis por possuírem fraquezas humanas das quais, aliás, ele faz bom uso e muita gozação. Não é à toa que mesmo contra tantos policiais, armas, tecnologias e até o Batman a tiracolo, Coringa consegue pintar e bordar em Gotham City. Parece mesmo que faltou Robin pra dar uma forcinha.

Em algum momento da trama, o vilão queima pilhas de dólares e grita a pérola “não é por dinheiro, é pela mensagem”. A mensagem do Coringa delata uma lógica criminosa instintiva e neurótica, mas que nada tem a ver com ganância ou a ambição capitalista. Coringa gosta de apreciar os pequenos prazeres da vida; matar as pessoas devagar e assistir a transformação pela qual elas passam quando estão próximas da morte. Curiosamente, ele gosta de desenhar sorrisos a facadas em suas bochechas. Crueldade e sarcasmo cozidos com sangue e bom-humor. Só por gozação.

Apesar da loucura, é a lógica mórbida e cômica do Coringa que protagoniza a trama. Quando no desfecho da discussão sobre o quão herói o homem-sem-graça-morcego é, o narrador diz “Batman não é um herói, é um guardião zeloso”. O espectador só pode se atolar em frustração. Afinal, o desequilíbrio do Coringa é bem mais inteligente. E seu discurso, mais convincente: “A única moralidade num mundo cruel é o acaso”.

Culto ao vilão – Conforme muitos já falaram, não restam dúvidas de que é Coringa quem vale o ingresso do cinema. O filme venera de tal forma a classe dos vilões que até mesmo um promotor público de Gotham City, Harvey Dent (vivido por Aaron Eckhart) - que até o meio do filme foi mais herói do que Batman - acaba aderindo ao modelo do vilão anárquico e, com isso, ganha um sarcasmo divertido que não tinha quando defendia o lado da sanidade do bem.
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No fim, o peso do título faz Batman "triunfar", afinal, alguém tinha que parar a diversão do Coringa em algum momento. O filme precisava terminar.
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segunda-feira, 28 de julho de 2008

Redundância recompensada ("Não sou um BBB")

Jornalista da Band News entrevistava João Ubaldo Ribeiro, vencedor do prêmio Camões de Literatura 2008. E eu me divertia...


BN: - Como você se sente ao vencer um dos prêmios mais importantes da literatura em língua portuguesa?

JUR: - Como você disse, no âmbito da língua portuguesa, é um prêmio consagrador. Isso só pode deixar a pessoa feliz...

BN: - Esse é um dos principais, se não o principal prêmio da literatura em língua portuguesa. Por que você acha que venceu esse prêmio?
(Blogueiro: - detalhe que João Ubaldo foi anunciado vencedor pelo conjunto de sua obra)

JUR: - Pela importância de minha obra para a literatura em língua portuguesa. É isso.

BN: - Em que o prêmio muda sua vida?

JUR: - É muito gratificante, pois o prêmio é consagrador...você se sente recompensado por todo o trabalho, pela dedicação, pela esperança...mas não chega a mudar minha vida.

BN: - nem os 100 mil euros?

JUR: - Veja bem...100 mil euros dava pra montar um apartamento num outro bairro de classe média alta aqui no Rio, mas não dá pra pagar as dependências e a empregada. Eu vivo de escrever - dos livros e dos textos que publico religiosamente em jornais -, pois se eu fosse viver da aposentadoria do INSS, estaria ganhando 1.200 reais. Portanto, esse dinheiro vai ficar guardado para ajudar quando eu não puder mais escrever...tem gente me tratando como um BBB, mas eu ganhei 100 mil euros, não 1 milhão.

BN: - Você está escrevendo algum livro novo?

JUR: - Não, eu não estou conseguindo...

BN: - o que está te faltando pra conseguir?

JUR: - sossego.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Papel e Palavras

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No papel me amplio para além das horas da rotina. Fico do tamanho do sol que nasce admirável sobre todos os mares. Proliferam-se os canteiros ao redor de meu pensamento. Alargam-se as fronteiras miúdas por onde varrem ventos as poeiras. Folhas se espalham secas, verdes, amassadas, inquietas, misturadas. Sou o eco de mim mesmo plantado em palavras.
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quinta-feira, 3 de julho de 2008

Entrelinhas da Infância


É no universo da infância que são forjados os adultos póstumos. Experiências vividas naqueles vastos anos que se espremem na metamorfose da criança em adulto são repletas de informações sobre as raízes da personalidade dos indivíduos. Sendo assim, olhar para trás significa buscar a essência própria, catar os grãos de vida que foram incorporadas ao longo da trajetória de uma pessoa.

Reviver memórias não é algo simples ou fácil. Esse é um percurso nem sempre claro e muitas vezes surpreendente que pode nos dar uma maior consciência a respeito de aspectos da própria índole. Reviver memórias é enfrentar um reencontro com fatos e sensações que explicam o que somos pelo que fomos e vivemos. É nos ver diante da criança que éramos para enfrentar a realidade da pessoa que nos tornamos.

Memórias de infância já foram contadas por grandes autores, como Graciliano Ramos em Infância (1945) e Jean-Paul Sartre em As Palavras (1964). Em novembro de 2006 foi a vez do escritor português José Saramago relatar suas lembranças de criança em As Pequenas Memórias - livro lançado simultaneamente em Portugal e no Brasil.

Não restam dúvidas do interesse que o resgate de memórias causa em escritores diversos. Entretanto o sucesso dessa empreitada autoral depende em grande parte do desempenho do autor na relação estabelecida entre a subjetividade típica da atividade literária e a realidade digna das lembranças a serem relatadas.

De certo que o domínio da prosa é um diferencial na hora de contar fatos, sentimentos e pensamentos que vêm de um passado real. São esses detalhes poéticos os responsáveis por transmitir uma determinada visão para o leitor e, principalmente, por proporcionar-lhe prazer estético. Nessa hora vale o talento literário e a sensibilidade criativa capazes de distanciar das simplórias biografias tais romances bibliográficos.

Para leitores e fãs, essas obras constituem também verdadeiros campos de pesquisa onde é possível encontrar vestígios da formação dos escritores. Traumas, lugares e fatos revelam o processo de desenvolvimento daquela pessoa através do que mais marcou sua memória. Temas recorrentes e aspectos do estilo podem ser, portanto, cavados a partir das experiências que eles nos contam.


Infância

No livro de Graciliano Ramos, as memórias guardadas do seu tempo de criança estão organizadas para contar uma história. O livro faz um recorte da vida do escritor, circunscrevendo um período determinado de seu desenvolvimento como indivíduo, que vai desde a mudança de sua família da zona da mata de Alagoas para o sertão pernambucano até o retorno ao estado de origem.

O respeito à evolução cronológica garante o formato da narrativa que acompanha o crescimento de Graciliano. Em certo ponto do livro o autor deixa claro que lança mão de sua criatividade na falta de lembranças completas a respeito de cada momento abordado “O hábito me leva a criar um ambiente, imaginar fatos a que atribuo realidade”.

A infância contada por Graciliano revela uma criança que cresceu na completa ignorância, sem afeto dos pais ou aparentes vocações. Traumatizado pela rude tentativa familiar de alfabetizá-lo, o menino tomou repúdio pela leitura. Quando já tinha 9 anos, depois de inúmeras imersões em escolas e ajudas paralelas, ele alcança, enfim, a graça de decifrar as palavras e encontra por meio da leitura o caminho para sua liberdade e sua individualidade.

“Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses dois entes difíceis ajustavam-se. Na harmonia conjugal a voz dele perdia a violência, tomava inflexões estranhas, balbuciava carícias decentes. Ela se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que nos batiam no cocuruto, dobrados, e tinham dureza de martelos. Qualquer futilidade, porém, ranger de dobradiça ou choro de criança, lhes restituía o azedume e a inquietação.” (Pais, p. 13)

Poesia dos olhos de criança

O cuidado com a construção do narrador-personagem é a marca do livro. Graciliano faz questão de transparecer na escrita o menino a quem as memórias pertencem. Cada descrição, impressão ou julgamento obedece à capacidade perceptiva de uma criança; parece dignamente captada por olhos miúdos. À medida que a história evolui, cresce a riqueza de detalhes e informações que deixam o relato cada vez mais claro e definido. Assim, a história amadurece junto com o menino que a conta.

O leitor saboreia uma prosa simples, que enfeita a visão imprecisa de uma mente rústica sem prejudicar o entendimento dos fatos. Ao contrário, isso proporciona uma leitura agradável, que experimenta uma descrição de sofisticada expressão poética. Imagens e metáforas enriquecem as impressões da mente infantil e carente de desenvolvimento.

“Datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal.[...] Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no tijolo gasto. Retalhos e sons dispersavam-se. Medo. Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor. Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se delinearam dois seres que me impuseram respeito.” (Imprecisão, p. 10, 11 e 12)

“Um dia faltou água em casa. Tive sede e recomendaram-me paciência. A carga de ancoretas chegaria logo. Tardou, a fonte era distante – e fiquei horas numa agonia, rondando o pote, com brasas na língua. Essa dor esquisita perturbou-me em excesso. Nos sofrimentos habituais eu percebia gestos desarrazoados, palavras coléricas. A minha vida era um extenso enleio que sobressaltos agitavam. Para bem dizer, eu flutuava, pequeno e leve. De repente, um choque, novos choques, estremecimentos dolorosos. Impossível queixar-me agora. Não me dirigiam ameaças, abrandavam, e as recusas apreciam quase doces. Na verdade não recusavam. Num minuto haveriam muitos canecos de água. Chorei. Embalei-me nas consolações, e os minutos foram pingando, vagarosos. A boca enxuta, os beiços gretados, os olhos turvos, queimaduras interiores. Sono, preguiça – e estirei-me num colchão ardente. As pálpebras se alongavam, coriáceas, o líquido obsessor corria nas vozes que me acalentavam, umedecia-me a pele, esvaía-se de súbito. E em redor os objetos se deformavam, trêmulos. Veio a imobilidade, veio o esquecimento. Não sei quanto durou o suplício.” (Sede, p. 24)

De onde nasce o autor

Características do consagrado Graciliano Ramos podem ser facilmente pescadas em Infância. Ao longo dos capítulos estão espalhados aspectos da personalidade do autor como suas grandeza, modéstia e lucidez. Um exmplo disso é a curioside pela leitura. Mesmo constantemente reprimido, o menino Graciliano não se fechara à ignorância que o atolava. Sua vida pouca jamais o tornara pedra.

A criança da história vive cercada por julgamentos e disciplina, desamor e rudeza. Esse é o sentido das primeiras relações experimentadas por ela, do seu contato inicial com o humano. O universo de contrastes se estabelece claramente nas alternâncias entre o inverno abundante e o verão de escassez, a tranqüilidade da vida interiorana e o temor da violência caseira. O menino Graciliano se mostra num mundo inconstante, de altos e baixos injustificados.

Esse ambiente de desconfiança é um retrato que se reproduziu na vida do escritor em diversas de suas obras (como Angústia, de 1936). Torna-se fácil explicar o pessimismo atribuído ao conjunto da obra literária de Graciliano Ramos quando temos diante dos olhos a criança que o fomentou, o ambiente onde foi criado.

A aspereza prosaica das obras do autor reflete, na verdade, as cores com que sua alma foi preenchida na infância. O menino maltratado, desvalorizado e a quem só eram atribuídos defeitos se reproduz na agonia, na tristeza, na desilusão e no ceticismo que suas obras literárias costumam carregar. Isso pode ser conferido em leituras como Insônia, Vidas secas e São Bernardo, entre outras.

“Mergulhei numa comprida manhã de inverno. O açude apojado, a roça verde, amarela e vermelha, os caminhos estreitos mudados em riachos, ficaram-me na alma. Depois veio a seca. Árvores pelaram-se, bichos morreram, o sol cresceu, bebeu as águas, e ventos mortos espalharam na terra queimada uma poeira cinzenta. Olhando-me por dentro, percebo com desgosto a segunda paisagem. Devastação, calcinação. Nesta vida lenta sinto-me coagido entre duas situações contraditórias – uma longa noite, um dia imenso e enervante, favorável à modorra. Frio e calor, trevas densas e claridades ofuscantes.[...] Bem e mal ainda não existiam, faltava razão para que nos afligissem com pancadas e gritos. Contudo as pancadas e os gritos figuravam na ordem dos acontecimentos, partiam sempre de seres determinados, como a chuva e o sol vinham do céu. E o céu era terrível, e os donos da casa eram fortes.” (Contrastes, p. 17 e 18)

“Essas moças tinham o vezo de afirmar o contrário do que desejavam. Notei a singularidade quando principiaram a elogiar o meu paletó cor de macaco. Examinavam-no sérias, achavam o pano e os aviamentos de qualidade superior, o feito admirável. Envaideci-me: nunca havia reparado em tais vantagens. Mas os gabos se prolongaram, trouxeram-me desconfiança. Percebi afinal que elas zombavam, e não me susceptibilizei. Longe disso: julguei curiosa aquela maneira de falar pelo avesso, diferente das grosserias a que me habituara. Em geral me diziam com franqueza que a roupa não me assentava no corpo, sobrava nos sovacos. Os defeitos eram evidentes, e eu considerava estupidez virem indicá-los. Dissimulavam-se agora num jogo de palavras que encerrava malícia e bondade. Essa mistura de sentimentos incompatíveis assombrava-me e pela primeira vez ri de mim mesmo. A doçura picante não me reformava, é claro, mas exibia-me como eu poderia ter sido se a natureza e o alfaiate me houvessem dado os recursos indispensáveis. Satisfazia-me a idéia de que a minha figura não provocava inevitavelmente irritação ou desdém, e as novas amigas surgiram-me compreensíveis e caridosas.
Guardei a lição, conservei longos anos esse paletó. Conformado, avaliei o forro, as dobras e os pespontos das minhas ações cor de macaco. Paciência, tinham de ser assim. Ainda hoje, se fingirem tolerar-me um romance, observo-lhe cuidadoso as mangas, as costuras, e vejo-o como ele é realmente: chinfrim e cor de macaco.” (Traços do autor, p. 184 e 185)


As Pequenas Memórias

Em As Pequenas Memórias, José Saramago reúne lembranças soltas, relatos de sua vida dos 4 aos 15 anos de idade que vão e voltam no tempo a todo instante. Essa empreitada autoral traz consigo a melindrosa tarefa que consiste em relacionar simples relatos do que Saramago traz na memória com o exercício literário. Certamente essa não foi uma tarefa tão árdua para o autor quanto o reencontro com seu tempo de criança.

Conforme declarou Saramago em entrevista concedida ao jornal espanhol El País, o processo de escrita do livro foi doloroso por retratar momentos de sua vida que classificou como “tempos que não tinham nada de idílicos”. Membro de uma humilde família da pequena aldeia Azinhaga, Saramago conviveu com a escassez de recursos e teve que aturar um pai que não lhe legou boas lembranças.

Como de costume, Saramago é primoroso na construção de uma prosa que por vários momentos se dissolve em poesia. A capacidade descritiva do romancista de escrita peculiar (seja na estrutura gramatical, seja no estilo) desabrocha livremente a cada fato contado com naturalidade. Conforme o próprio autor diz no livro, ali estão “as pequenas memórias. Sim, as memórias pequenas de quando fui pequeno, simplesmente.”.

Pitadas de comédia acompanham a fala de Saramago, que em diversos momentos faz uso da auto-ironia e concede assim uma maior leveza à sua prosa. Observações quase cômicas impõem um bom ritmo ao texto, que vai se refrescando a cada mudança temática. O tom cômico discreto pode ser notado quando o autor se dedica à história do nome Saramago “Suponho que deverá ter sido esse o único caso, na história da humanidade, em que foi o filho a dar o nome ao pai” ou quando fala do seu registro de nascimento, que o declara nascido dois dias após a data verdadeira “Em relação à data de nascimento que tenho no bilhete de identidade morrerei dois dias mais velho, mas espero que a diferença não se note demasiado.”.

A idéia do livro surgiu, como revela Saramago em certa altura da obra, nos tempos em que o autor trabalhava no romance Memorial do Convento. O projeto inicial do que até então seria “O livro das Tentações” era mostrar a subversão que a idéia de santidade provocava na natureza humana, em seu lado mais animal. Depois o autor se recolheu a essa proposta mais simples em que reúne memórias de sua meninice, embora confesse enxergar nela vestígios de sua intenção inicial, como revela no trecho seguinte: “[...] sendo eu um sujeito do mundo, também teria de ser, ao menos por simples ‘inerência do cargo’, sede de todos os desejos e alvo de todas as tentações.”.

“Contei noutro lugar como e porquê me chamo Saramago.Que esse Saramago não era um apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registro Civil da Colega o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude, decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacônico José de Sousa que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem ao bebê-lo, não precisei de inventar um pseudônimo para, futuro havendo, assinar os meus livros.” (Saramago, p. 43 e 44)

O homem que era menino

José Saramago encara sua infância com muita perspicácia. As falas do narrador-personagem são compostas não só por descrições de lembranças ou resgate de pensamentos, mas incluem análises psicológicas e conclusões tardias. Embora dê espaço e respeite Zezinho, ele não permite que a criança conte as histórias. O autor Saramago se impõe como dono das palavras e retoca com sua maturidade as memórias e suas eventuais interpretações. Algumas das lembranças trazem ao autor conclusões a respeito de sua infância latente e registram sua análise e até um olhar romântico sobre o passado.

“Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo aparecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos...” (Horas da infância, p. 59)

Da criança nasce o autor

Nas linhas de memórias é possível encontrar o nascimento de motivações do Saramago autor. Dentre diversas coisas que o escritor português conta no livro, há informações sobre a carreira escolar do menino Zezinho, do seu interesse pelo estudo de francês e literatura e até uma precoce leitura de Molière.

Otros vestígios do entendimento entre Saramago e as palavras estão espalhados entre as memórias. O autor não deixa escapar, por exemplo, a sua dedicação à leitura de jornais velhos quando morava com os avós. Na mesma época, por volta dos 10 anos de idade, ele conta do bom desenvolvimento que tinha tanto na leitura quanto na escrita. Saramago também faz referências a episódios que julga tê-lo influenciado posteriormente na hora de escrever obras consagradas, como Memorial do Convento, Ensaio sobre a cegueira, Todos os Nomes, As intermitências da morte e Evangelho segundo Jesus Cristo “É também desse tempo o descobrimento do mais primitivo dos refrescos que já me passaram pela garganta: uma mistura de água, vinagre e açúcar, a mesma que viria a servir-me, com excepção do açúcar, para, no meu evangelho, matar a última sede de Jesus Cristo.”.

A obra ainda contempla alguns registros históricos que fizeram parte da vida do autor. Saramago conta como acompanhou a guerra civil espanhola através da imprensa, até perceber o esquema de censura pelos militares a favor de Franco. O autor relata a reação de Zezinho, que desde então não gosta de militares, até Saramago. O autor revela também como, por intuição, tomou antipatia a Hitler, Mussolini e Salazar no período em que lia jornais velhos.

“Quando a guerra civil da Espanha começou, eu já trocara o Liceu Gil Vicente pela Escola Industrial de Afonso Domingues [...] Lia na imprensa que aos combatentes de um lado se dava o nome de vermelhos e que aos outros os devíamos conhecer por nacionalistas [...] Até o dia, que cedo foi, em que percebi que andava a ser ludibriado pelos militares reformados que se empregavam na tarefa de censurar a imprensa, fazendo suas, respeitosamente, a mão de ferro e a luva de veludo. Vitórias, só as de Franco, decidiam eles.” (Guerra espanhola, p. 131)

“Estas duas imagens – a de um Dollfuss que sorria vendo passar as tropas, quem sabe se já condenado à morte por Hitler, a da mão de ferro de Salazar escondida por baixo da macieza de um veludo hipócrita – nunca me deixaram ao longo da vida. Não me perguntem porquê. Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar, outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, fulgurância, iluminações, e não há explicações para elas, não as convocávamos, mas elas aí estão. E são estas que me informam que já nesse tempo, para mim, mais por intuição, obviamente, que por suficiente conhecimento dos factos, Hitler, Mussolini e Salazar eram colheres do mesmo pau, primos da mesma família, iguais na mão de ferro, só diferentes na espessura do veludo e no modo de apertar.” (Hitler, Mussolini e Salazar, p. 130)

Memórias imprecisas

Outro aspecto que Saramago faz questão de deixar claro para o leitor é a imprecisão das memórias ali postas. O autor confessa não ter controle absoluto das fronteiras entre o que realmente aconteceu, o que é fruto de sua imaginação infantil ou o que é puro artifício literário. Segundo ele, é possível que a imaginação dê cor a falsas lembranças. Entretanto isso não constitui uma preocupação para Saramago. Em diversos momentos ele afirma não ter certeza de que fatos ocorreram da forma como foram contados e deixa dúvidas a respeito da veracidade de algumas informações.

Essa discussão sobre a natureza da memória vai e volta durante o livro. Na verdade, o apuro da veracidade não é uma exigência da obra. Ao contrário, a indefinição de fronteiras acaba interagindo com o formato livre que o escritor adotou para o “enredo” do livro - que não obedece à cronologia e nem possui rígida divisão temática. Além de tudo, essa imprecisão entra na cartilha da criatividade poética que envolve a construção literária do livro.

"Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e úmida vara ou os sonoros remos de antanho, e impelir, sobre a lisa pele da água, o barco rústico que conduziu às fronteiras do sonho um certo ser que fui e que deixei encalhado algures no tempo. [...] Essa perda, porém, há muito tempo que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as suas paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a cancela do quintal onde um dia vi uma pequena cobra enroscada, entrar nas pocilgas para ver mamar os bácoros, ir à cozinha e deitar do cântaro para o púcaro de esmalte esborcelado a água que pela milésima vez me matará a sede daquele Verão.” (Memórias perdidas, p. 15 e 16)

“Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas. [...] Em rigor, em rigor, penso que as chamadas falsas memórias não existem, que a diferença entre elas e as que consideramos certas e seguras se limita a uma simples questão de confiança, a confiança que em cada situação tivermos sobre essa incorrigível vaguidade a que chamamos certeza.” (Não há memórias falsas, p. 58 e 110)


Confira outros trechos de As Pequenas Memórias:

Azinhaga (p. 09, 10 e 11)
“À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade, mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo), e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes. [...] Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer onde nasci tivesse sido conseqüência de um equívoco do acaso, de uma casual distração do destino, que ainda estivesse em suas mãos emendar. Não foi assim. Sem que ninguém de tal se tivesse apercebido, a criança já havia estendido gavinhas e raízes, a frágil semente que então eu era havia tido tempo de pisar o barro do chão com seus minúsculos e mal seguros pés, para receber dele, indelevelmente, a marca original da terra, esse fundo movediço do imenso oceano do ar [...] Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos ilegíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda haveria de retornar a Azinhaga para acabar de nascer. Durante toda a infância, e também os primeiros anos da adolescência, essa pobre e rústica aldeia [...] foi o berço onde se completou minha gestação, a bolsa onde o pequeno marsupial se recolheu para fazer da sua pessoa, em bem e talvez em mal, o que só por ela própria, calada, secreta, solitária, poderia ter sido feito.”

Paisagem (p. 13)
“a criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imagina-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: ‘que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!’ Naturalmente, quando subia ao campanário da igreja ou trepava ao topo de um freixo de vinte metros de altura, os seus jovens olhos eram capazes de apreciar e registrar os grande espaços abertos diante de si, mas há que dizer que a sua atenção sempre preferiu distinguir e fixar-se em coisas e seres que se encontrassem perto, naquilo que pudesse tocar com as mãos.”

Peixe (p. 78 e 79)
“Voltei ao sítio, já o sol se pusera, lancei o anzol e esperei. Não creio que exista no mundo um silencio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci. Ali estive até quase não distinguir a bóia que só a corrente fazia oscilar um pouco, e, por fim, com a tristeza na alma, enrolei a linha e regressei a casa. Aquele barbo tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de certeza não morreria de velho, alguém o pescou num outro dia qualquer. De uma maneira ou de outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu.”

Avô (p. 119 e 120)
“Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. [...] O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vêm cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa séria que não pôde ser nunca. [...] Mas a imagem que não me larga nessa hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia terá o pressentimento de que o fim chegou, e irá, de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Que palavra dirá então?”

Avó (p. 120)
“Tu estavas, avó, sentada na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabias e por onde nunca viajarias, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e disseste, com a serenidade dos teus noventa anos e o fogo de uma adolescência nunca perdida: ‘o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.’ Assim mesmo. Eu estava lá.”

Cavalos (p. 22, 23 e 24)
“O meu problema com os cavalos é mais pungente, daquelas coisas que ficam a doer para toda a vida na alma de uma pessoa. [...] Voltemos ao tio Francisco Dinis.[...] Ora, em tantos anos – dos oito de idade aos quinze são muitos, muitíssimos – nunca aquele tio se lembrou de subir-me para a desejada sela, e eu, suponho que por um orgulho infantil de que não podia ser consciente, nunca lho pedi.[...] Hoje tenho imagens desses animais por toda a casa. Quem pela primeira vez me visita pergunta-me quase sempre se sou cavaleiro, quando a única verdade é andar eu ainda a sofrer dos efeitos da queda de um cavalo que nunca montei. Por fora não se nota, mas a alma anda-me a coxear há sessenta anos.”
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Ilustração: Leonardo Matos
Fotos: Divulgação
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sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Os Olhos de Cássie


Na vida precisamos de um plano. Esta é a lição de Cássie (Anna Sophia Robb), uma rara menina de 13 anos em busca da felicidade. Planejando seu futuro junto a Ben (Cayden Boyd) ela definiu metas reais para suas vidas e as perseguiu com objetividade e determinação. Até aqui não há nada além de uma lição de ADM aplicada na gestão estratégica do futuro de uma pessoa. Ou melhor, de duas.

O tocante, no entanto, não é o enredo da história de Cássie ou sua personalidade forte e encantadora, mas o enigmático desenho de seus olhos. Não me refiro apenas ao estético, visual, mas sim ao que eles traduzem para os espectadores de Em busca da felicidade*. E para além disso, me refiro ao que eles, em sua beleza e fascinação, resguardam dentro de si. O filme inteiro está depositado ali, no mistério dos olhos de Cássie.

A busca pela felicidade que Ben e Cássie trilham juntos não pode ser reduzida, em nenhuma hipótese, a um enredo água-com-açúcar. Não pode, sobretudo, devido ao complexo sentimento de culpa e remorso que Cássie suporta por de trás de seus olhos. Toda essa perturbação emocional faz de sua jornada em busca de uma vida feliz uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo que ela segue com rigor o caminho para uma felicidade planejada, dentro de si ela foge, assustada, da tortura que consome sua força e sua alegria. Até não poder mais.

Quando Cássie já não tem saída, eis que surge Ben pra salvá-la de si mesma com seu próprio antídoto para a vida: um plano. Após ser libertado por Cássie de uma vida gélida e sem nem uma pitada de afeto, Ben se vale dos ensinamentos de Cássie para trazê-la de volta do sofrimento que a dominara. Desta vez o plano é absolver-se da culpa. E seguir adiante.

O que motivara Ben, no entanto, foi a insuportável saudade dos olhos de Cássie. Olhos que, apesar de intimidantes, encantadores, fascinantes, o acariciavam com um desconhecido sentimento de amor. Este amor que o surpreendera por fazê-lo descobrir a felicidade ainda durante o caminho que julgava estar percorrendo justamente para encontrar uma vida feliz. Mas só no fim, dizia o plano.


A lição de Cássie é muito importante...conforme ela ensinou a Ben, “na vida precisamos de planos, afinal a vida já é muito louca sem um”. Mas a maior lição de Em busca da felicidade é aquela que Cássie não previra e muito menos enxergara em sua obstinação para cumprir seus planos. A felicidade não está apenas no fim do caminho, mas ao longo de seu percurso. O amor e as relações que cultivamos ao longo da jornada é que fazem, no fim das contas, ela valer a pena. Além do mais, não há plano perfeito que nos leve a uma felicidade completa e, por isso, temos que aprender a ser felizes mesmo com os problemas.




* Para quem quiser mais informações do filme, inclusive assistir o trailer: www.embuscadafelicidade.com.br

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Mas por que não nos reinventar?

Sempre gostei de tango, de como ele envolve, seduz. O som do tango dilata um ambiente de luxúria absolutamente irresistível. Parece que as notas musicais se combinam para formar sons e timbres afrodisíacos, que entram pelos ouvidos e esquentam todas as partes. É estranho, mas o tango parece ser capaz de carregar as pessoas para onde quiser. Paixão, sedução e tesão. Tudo se mistura numa prisão sem saída, porém habitada por liberdade. No tango pode tudo em matéria de amor. O tango é a dramatização da paixão.

Mas por que não reinventar o tango? Colocar nele a voz humana... nada contra, desde que letra e voz convertam para os mesmos propósitos do arranjo: drama, paixão, sedução...loucura. Ainda sim não admitiria quaisquer palavras a contornar a melodia, muito menos qualquer voz a percorrê-la. A letra de um tango não pode jamais abdicar do delírio e da força dramática. No caso da voz, é preciso que ela seja um acúmulo de antíteses musicais. Precisa ser forte e delicada; grande e leve; densa, porém maleável como uma pena solta no ar à mercê de ventos mais fortes ou fracos. Tudo isso ao mesmo tempo. A voz no tango precisa ser capaz de passear por todos os sentidos da paixão, sem esmorecer. Um, dois...


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TRÊS*

Um
Foi grande o meu amor
Não sei o que me deu
Quem inventou fui eu
Fiz de você meu sol
Da noite primordial
E o mundo fora nós
Se resumia a tédio e pó
Quando em você
Tudo se complicou
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Dois
Se você quer amar
Não basta um só amor
Não sei como explicar
Um só sempre é demais
Pra seres como nós
Sujeitos a jogar
As fichas todas de uma vez
Sem temer naufragar

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Não há lugar pra lamúrias
Essas não caem bem
Não há lugar pra calúnias
Mas por que não nos reinventar?
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Três
Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder partir
Quero poder ficar
Poder fantasiar
Sem nexo e em qualquer lugar
Com seu sexo junto ao mar


* A canção TRÊS é uma composição dos irmãos Marina Lima e Antônio Cicero.